OS ESCRITORES QUE JÁ PASSARAM pela experiência provavelmente vão concordar comigo: é surpreendente quando um poema de nossa autoria é lido em voz alta por outra pessoa, ou quando um conto é transformado num curta-metragem, ou quando um romance vira uma peça de teatro ou um filme. Perdemos o controle do que é nosso, que agora passa a ser de todos. Mais ou menos como um filho que ganha o mundo.
Quando escrevemos, temos total domínio sobre a situação. Cada palavra é rigorosamente escolhida para transmitir melancolia, entusiasmo, resignação ou o que for. O personagem está sob nossa regência, a gente o conhece como a nós mesmos, já que nós e ele somos, de certa forma, a mesma pessoa. Madame Bovary c¿est moi, disse Flaubert, e isso vale para todos os que escrevem, para todos os que transferem suas angústias, suas fantasias e seus sentimentos para seus personagens, camufladamente ou não. Desconfio daqueles que se autodenominam apenas contadores de histórias. Mesmo estes, em algum momento ou outro, revelam-se nas entrelinhas.
Mas o texto é apenas 100% do autor enquanto inédito. Uma vez publicado, passa a sofrer a interferência do leitor, que interpretará o que está lendo de uma maneira muito particular, de acordo com as experiências que acumulou, de acordo com seu estado de espírito no momento da leitura ou das carências por que anda passando. Num sarau, por exemplo, a pessoa que está lendo em voz alta um poema que não é dela dará uma pontuação diferente, fará uma pausa onde preferiríamos aceleração, ou dará carga dramática a um verbo que nos parecia supérfluo. Nem poderia ser diferente. É o leitor assumindo seu posto de co-autor. Todos os leitores são co-autores. Por e-mail me chegam mensagens de pessoas que, ao comentarem um mesmo texto, referem-se a ele de maneira totalmente diversa. Uns o consideram poético, outros o consideram cômico ou mal-humorado, e cada um está certo à sua maneira, pois não estão interessados em desvendar o que o autor pensa, e sim em formular sua própria opinião. Autor e leitor entram em comunhão quando encontram afinidades, mas, ainda que se entendam, o texto raramente mantém-se idêntico para os dois.
Agora imagine quando um texto passa não apenas por uma interpretação, mas por várias, no caso de ser adaptado para o palco ou para as telas. Haverá a leitura do diretor, do produtor, do adaptador, dos atores. Todos eles co-autores, todos acrescentando seu ponto de vista, sua sensibilidade e seu humor a partir de algo que foi exclusivo do autor um dia. Foi. Não é mais.
Escrever, pra mim, é um ato de exorcismo, e creio que é assim para muitos. É quando liberamos nossos demônios. Abandonamos as versões oficiais, civilizadas e contemporizadoras, para, amparados pela liberdade e pela inocência que a ficção nos confere, deixar a autocensura de lado e acertar as contas com nossas loucuras e nossos desejos inconfessos. E então, um belo dia, tudo isso sobe ao palco, o exorcismo se dá de fato, nossos adoráveis demônios ganham voz, rosto, gestos, movimento. É assustador e fascinante a um só tempo.
Hoje à noite a peça Divã, baseada num livro de minha autoria, encerra sua primeira temporada carioca no Teatro Laura Alvim, mas retorna já sexta-feira que vem no Teatro das Artes, no Shopping da Gávea. Assisti três vezes, e nas três eu passei o tempo todo ora rindo de alegria, ora rindo de nervoso, pensando esta sou eu, esta não sou eu, até conseguir relaxar, me divertir e concluir: claro que não sou eu. Não apenas eu. São eles, os personagens, que ganharam vida própria, e é o público também, que se identifica e se enxerga. É um pouquinho de cada um de nós, porque ninguém consegue passar a vida sem se fundir com o outro, ninguém é tão monolítico ¿ e mais: todos os dias somos interpretados por quem nos cerca. Viver é uma constante terapia em grupo. Escrever não é diferente.
(Martha Medeiros)
terça-feira, 19 de agosto de 2008
Postado por Lívia às 18:24
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